A barreira de vidro

PROPRIEDADE

Na primeira cena, um episódio de violência urbana gravado com um celular introduz o trauma da estilista Teresa (Malu Galli), o que leva seu marido a adquirir um automóvel blindado e dotado de inúmeros recursos de última geração. Esse carro, protagonista absoluto e núcleo metafórico de Propriedade, é então apresentado com a estética dos anúncios publicitários. Ao longo do filme, sua função passará por várias transformações, de refúgio a prisão e a algo ainda pior.

Propriedade é mais um potente filme pernambucano a dramatizar as heranças escravagistas e colonialistas brasileiras, levando a luta de classes a uma literalidade hiperbólica. A participação de Pedro Sotero, o diretor de fotografia de Bacurau, não é o único ponto em comum com o filme de Kleber Mendonça Filho. Há ali também uma disposição para combinar a crítica social com os elementos do thriller quase terrorífico, o que sugere ainda um parentesco com os filmes do estadunidense Jordan Peele.

Roberto (Tavinho Teixeira), o marido de Teresa, é o proprietário de uma fazenda que está sendo vendida para dar lugar a um grande hotel de luxo. Os empregados descobrem que estão prestes a ser demitidos e explorados pelos patrões. Por ocasião da visita do casal, eles se revoltam e exigem seus direitos. A confrontação toma rumos inesperados e cada vez mais dramáticos à medida que Teresa fica refém do carro supertecnológico. Desde uma das primeiras sequências, na (falta de) interação entre Teresa e seu cachorro, uma superfície de vidro delimita os universos em que cada lado mal vê, ouve ou considera o que está do outro.

Dentro de uma lógica que vai brutalizando a todos progressivamente, Daniel Bandeira (Amigos de Risco), diretor e autor do roteiro original, consegue criar perfis diferenciados para cada personagem. Destacam-se as figuras do vingador impiedoso, do negociador e da matriarca proletária (Zuleika Ferreira), que vocaliza uma ilusória transmissão de propriedade entre patrões e empregados. Há uma magnífica complexidade nas relações dentro do grupo, sem lugar para maniqueísmos classistas. Roberto e Teresa, por sua vez, personificam ao mesmo tempo a arrogância dos velhos senhores de engenho e o temor de uma sublevação dos seus servos.

Um elenco em ponto de bala, diálogos de uma precisão espantosa, uma fotografia virtuosística, assim como a montagem de Matheus Farias e a construção sonora (trilha de Caio Domingues e Nicolau Domingues), fazem de Propriedade um dos filmes mais eletrizantes que vi ultimamente. O desfecho impactante e literalmente irrespirável é coisa difícil de esquecer.

>> Propriedade está nos cinemas.

2 comentários sobre “A barreira de vidro

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